Não é segredo
que a ditadura militar varreu a existência de centenas de civis no Brasil,
alguns deles até hoje sem respostas definitivas sobre o que de fato aconteceu.
Nesse contexto, dá para se imaginar o sofrimento de tantas famílias que, em
meio à dor, precisaram reunir forças para seguir em frente.
Direto da adaptação homônima biográfica de Marcelo Rubens Paiva, o longa do diretor Walter Salles (Central do Brasil, 1998) é uma produção franco-brasileira e tem como cenário o sombrio período do regime militar, em um paradisíaco Rio de Janeiro na década de 70. A direção de fotografia do argentino Adrian Teijido nos transporta diretamente para a época em um trabalho de ambientação sublime, em momentos que o longa parece um registro caseiro com a ajuda de uma câmera Super 8, dando um aspecto experimental à produção.
Ainda Estou
Aqui retrata o cotidiano da família Paiva, tendo como foco a matriarca Maria
Lucrécia Eunice Faciolla Paiva (Fernanda Torres), que precisa lidar, junto a seus filhos, com o
choque da repentina prisão do marido, o ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva (Selton
Mello) por órgãos de repressão da época.
Mais do que “apenas” um novo filme sobre a ditadura, Ainda Estou Aqui lança luz sobre um outro aspecto do período, o de famílias que foram impactadas com o desaparecimento de seus entes. Um tema como este pede uma abordagem mais séria, e por isso, evidencia-se o cuidado de Walter Salles e equipe técnica. Fotografias e cenas trazem momentos idênticos aos reais em um exemplar trabalho de caracterização, figurino e também sonoro com trilha de Roberto Carlos, Gal Costa e Erasmo Carlos como alguns dos nomes.
Em particular, há
uma cena que se destaca no longa. Militares da inteligência chegam à residência
dos Paiva, fechando cortinas que soam como o raspar de facas, ao mesmo passo
que as portas da casa são fechadas levando tanto o público quanto a família a
se questionar o que está acontecendo. É aqui que o filme se transforma, levando
de um ambiente acolhedor para um verdadeiro pânico.
Fernanda Torres traz uma mulher que não entrega em palavras, mas em sutilezas que dizem nas entrelinhas no que talvez seja a maior atuação de sua carreira. O silêncio prevalece sobre o grito e a sobriedade fala alto em momentos que o espectador mais está esperando um choro. Torres consegue captar a tensão que o longa pede, em uma complexidade e rigidez de quem se tornou símbolo de resistência e esteve à frente de campanhas em busca da verdade sobre as vítimas do regime militar.
Selton Mello não apenas parece muito semelhante ao político Rubens Paiva, mas entrega uma atuação cativante e solar, contrapondo a tragédia que estaria prestes a abalar aquela família. O elenco de apoio, que conta com nomes como Dan Stulbach, Humberto Carrão, Marjorie Estiano, Valentina Herszage e Fernanda Montenegro parece ter sido escolhido a dedo. Aliás, Montenegro possui pouquíssimos minutos de cena, sem dizer uma única palavra sequer, e mostra porquê é uma das maiores atrizes da história do cinema.
Ovacionado nos festivais de cinema mundo afora, Ainda Estou Aqui é um dos favoritos ao Oscar 2025, podendo finalmente vingar o Brasil na premiação e não é exagero dizer a maneira como o filme atravessa o espectador ao falar de temas universais a todo ser humano, seja ele de esquerda ou de direita. A ausência de um pai é trazida de forma simbólica e implícita, seja em uma criança que se despede de uma casa, ou em roupas que deixam de fazer parte de um guarda-roupa. Ainda Estou Aqui é como uma chaleira em ebulição e mostra que mesmo nos piores momentos, o ser humano ainda é capaz de sorrir. E estejamos vigilantes: o mal está sempre à espreita.
Ainda Estou Aqui
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega